Lourenço Mutarelli
Ou qualquer coisa é sinal se você é maluco o suficiente
O último filme que vi no cinema foi A Melhor Mãe do Mundo, da Anna Muylaert (gostei bastante). Não sabia a sinopse, não tinha assistido ao trailer e o único ator que tinha certeza de que iria aparecer na telona era o Seu Jorge. Então eu ia me surpreendendo com cada pessoa que surgia para compor o elenco. Uma hora era o Dexter, outra a Luedji Luna. Mas teve um que ficou na minha cabeça: o romancista e quadrinista Lourenço Mutarelli, ator que emprestou seu corpo para o velho safado que entrega marmitas.

Ele pode não ter alugado um triplex na minha mente, mas ficou dormindo no meu sofá mental por algumas semanas. Ele prometeu ser provisório, mas ainda está aqui na minha cabeça. Tanto que o último filme que vi em casa, enrolado em uma coberta no meu sofá não mental, foi O Natimorto, que ele protagoniza e que é baseado em um dos seus livros. Não curti o filme. Tem gente que gosta, mas o Mutarelli não é um deles. Eu gosto do livro, é sobre um caça-talentos que encontra uma mulher com uma voz maravilhosa, mas que só ele consegue escutar. E ele tira tarô com aquelas imagens de alerta que aparecem no fundo dos maços de cigarros. É o último livro que reli. Fui até a biblioteca pegar o livro. E acabei pegando O Cheiro do Ralo, que estava ali do lado e que ele também escreveu. Foi o último livro que li. É a história de um cara que compra objetos das pessoas e é apaixonado pela bunda de uma mulher de nome estranhíssimo e que trabalha de garçonete em uma lanchonete de quinta categoria. Gostei. Fui devolver e acabei pegando mais dois livros dele. Vão ser os próximos que vou ler.
Não sei se ficou claro que a minha atual obsessão cotidiana é o Lourenço Mutarelli, mas queria dizer que a minha atual obsessão cotidiana é o Lourenço Mutarelli.
E uma coisa que eu descobri também nesses dias é o conceito de Sincronicidade do Carl Jung. Trata-se de eventos que, para uma pessoa, têm conexão, mas não têm relação de causa e efeito. Em outras palavras, para quem é maluco o suficiente, qualquer coisa é sinal. E eu estava stalkeando o perfil do Instagram @mutarellilourenco e vi que o meu autor mais lido das últimas semanas faria uma oficina no Sesc da Avenida Paulista no dia seguinte.
Era um sinal.
Fui.
Cheguei atrasado.
Terminei minhas tarefas do trabalho mais tarde do que planejava. E era dia de trabalhar de casa. Peguei trânsito entre o ABC Paulista e São Paulo. Tinha que chegar meia hora antes para pegar senha; cheguei meia hora depois e fingi que nada aconteceu. Por sorte, tinha um lugar na última fila. Viu como era um sinal? Quando cheguei, o Mutarelli estava contando uma história de quando era criança e entrou no mar pela primeira vez. E ele falou que seguiu reto dentro do mar, como se estivesse indo em direção a um cara que vestia uma camiseta que ele tinha adorado. Por não conhecer as leis do oceano, acabou se deslocando de maneira não intencional até outro cara que estava na mesma fileira, um menino tímido que perguntaram o nome e respondeu gaguejando, sentado algumas cadeiras à direita do cara com a camisa que o Mutarelli tinha adorado.
Não sei por que ele começou aquela história, então não consigo precisar se ele terminou. Mas ele voltou a ela algumas vezes, porque sempre divagava para outros assuntos. Ele começava a falar da camiseta do cara, que eu não tinha visto a estampa, mas ele elogiou com aquele tom que a gente elogia camiseta de banda. Era uma imagem relacionada ao Daniel Johnston. E ele disse, decepcionado, que a Zara vai começar a vender roupa com os desenhos do cantor. Aí ele tinha entrado no mar. Depois, ele parava para falar que os seus alunos sempre são tímidos, como é o caso do cara que respondeu gaguejando o próprio nome. E, quando saiu do mar, estava perdido.
Ele me lembrou um mendigo que encontrei nessa biblioteca em que peguei os livros. Quando trabalhava remoto todos os dias, às vezes estava de saco cheio do meu quarto e ia usar a internet de um espaço público para ver um ambiente diferente, olhar pessoas circulando, pegar um ônibus. Pedi licença e sentei próximo ao morador de rua, para poder usar a tomada e conectar o meu notebook. A gente começou a conversar. Eu gosto de dar palco para maluco. Ele começava a contar uma história, mas nunca terminava. Ficava me questionando se eu sabia das coisas. Falou que eu era inteligente porque já tinha ouvido o Bartô Galeno. A verdade é que uma das minhas muitas obsessões cotidianas tinha sido a música brega, e que o cantor de No Toca-Fitas do Meu Carro era um dos meus favoritos, por ser acompanhado de um baixista que tenho certeza de que foi muito influenciado pela Motown. E aí voltava para o primeiro assunto. Como fez o Mutarelli. Tem uma linha tênue entre o louco e o gênio.
O escritor disse que o seu processo criativo sempre estava relacionado a pensar na infância, que foi o seu período mais sombrio. Quando saiu do mar, estava perdido e a mãe estava bêbada de caipirinhas. Pediu para a gente fazer um exercício: fechar os olhos e pensar em uma árvore. A gente fez isso várias vezes também. E não terminamos. Tinha um cara fazendo a mediação, ele até tentava voltar para os assuntos e para o exercício, mas o Mutarelli se perdia novamente. Ele também desistiu. E foi melhor assim.
O papo foi para todos os lados. Ele disse que não era um professor, mas um desorientador, e que suas oficinas servem para tirar a gente do eixo. Me lembrou um pouco o Tom Zé, que está te confundindo para te explicar. Disse para a gente não ser duro com nós mesmos, que não é para escrever tentando ganhar um prêmio e que é maravilhoso que a gente pegou uma folha em branco e transformou em arte. É como se fosse um bilhetinho que talvez alguém ache. Talvez alguém leia. Talvez alguém se identifique. Reclamou das políticas culturais: que deu aulas no Sesc por 10 anos e que nunca corrigiram o valor da hora-aula. Que doou sua coleção de quadrinhos para a Gibiteca do Sesc Pompeia para que todo mundo tivesse acesso, mas eram coisas tão raras que o Sesc não deixa ninguém ver. Que todas as coisas que tinham no Itaú Cultural ali do lado eram ótimas, porque as pessoas que faziam a curadoria eram ótimas, mas que era mantido pela Lei Rouanet e, assim, o Itaú passa a imagem de amigo das artes, mas está só destinando o imposto que já iria pagar.
Ele contou piadas. No plural. Tomou cuidado com o politicamente correto dos nossos tempos. Antes de contar uma delas, disse que os personagens não tinham nacionalidade ou coisa do tipo. Mas se chamavam Manoel e Joaquim. Disse que nós, homens, somos ensinados a esconder as emoções. E é verdade. Algumas pessoas da plateia ele já conhecia e foi dar um beijo nelas. Que, quando gosta de alguém, não sabe bem demonstrar. E aí dedicou uma música para uma dessas pessoas. Achei que seria alguma coisa como o encontro do Duke Ellington com o John Coltrane. Mas era bem diferente. Acho que era em italiano. Parecia uma língua latina, mas não reconheci. Ele recitou um poema. Eu achei muito bonito. Vou colocar o soneto inteiro aqui. É de um cara chamado Glauco Mattoso. Na verdade o nome dele é Pedro, mas foi rebatizado por ter glaucoma. Pegou o trocadilho?
SONETO 234 CONFESSIONAL
Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.
Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.
Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.
Se serve de consolo, seja assim:
Amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim…
Gosto muito da primeira estrofe.
Muita coisa ficou de fora. Mas queria deixar registrado que acabou com ele sentado no chão fazendo mágica.
Acho que ele não fechou nenhuma ponta e a minha cabeça ficou fervilhando. Como eu não tinha nenhum livro dele, ia pedir para ele autografar uma carta do Tarô de Marselha que eu tinha no bolso. Mas não consegui ficar parado esperando. Fui caminhar na Paulista. Queria parar em algum lugar para comer, mas tudo ali parece um shopping center. Tudo muito grande, tudo muito limpo. Não combinava com a minha cabeça. Entrei em uma livraria, mas tudo muito quieto e organizado. Não combinava com a minha cabeça.
Antes de ver a oficina eu já estava preparando esse texto. Seria mostrando algumas das coisas do Lourenço Mutarelli que me deixaram obcecado. Só uns comentários dos livros e dos filmes. Mas virou um bilhetinho.
Tomara que alguém ache. Tomara que alguém leia. Tomara que alguém se identifique. E tomara que alguém me explique de volta.
PS. Essas oficinas vão continuar. A do Lourenço Mutarelli foi a primeira e, nas próximas quintas-feiras, haverá encontros com outros autores. Eu nunca li nada dos próximos convidados e, de nome, só conheço a Andréa del Fuego e a Clara Averbuck. Mas suspeito que essa foi a mais diferente.



